Governança da água: desafios e oportunidades para o Brasil
A governança da água é um dos maiores desafios da contemporaneidade. Diante de um cenário global de escassez hídrica, degradação ambiental, conflitos de uso e eventos extremos relacionados ao clima, garantir a gestão eficiente dos recursos hídricos tornou-se essencial para a segurança hídrica, alimentar, energética e ambiental.
No Brasil, país com uma das maiores disponibilidades de água doce do mundo, esse tema assume contornos complexos e urgentes. Embora o país tenha cerca de 12% da água doce do planeta, a sua distribuição é desigual, a infraestrutura hídrica é insuficiente em muitas regiões e a qualidade da água tem sido ameaçada por diferentes pressões antrópicas (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO, 2022).
A governança da água pode ser definida como o conjunto de sistemas políticos, institucionais, legais, administrativos e sociais que orientam a tomada de decisões sobre o uso e a gestão dos recursos hídricos. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2015), uma boa governança da água depende da capacidade de articular múltiplos atores — governos, usuários, sociedade civil e setor privado — de forma coordenada, transparente e baseada em dados confiáveis. Envolve, portanto, não apenas estruturas técnicas e regulatórias, mas também aspectos de participação, justiça, equidade e accountability.
O Brasil adotou, a partir da década de 1990, um modelo de governança descentralizado e participativo, inspirado nos princípios da gestão integrada dos recursos hídricos. A promulgação da Lei nº 9.433/1997, conhecida como a “Lei das Águas”, instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH). Essa legislação consagrou a água como um bem de domínio público, limitado, dotado de valor econômico e cuja gestão deve sempre ser descentralizada e participativa (BRASIL, 1997).
Os instrumentos da PNRH — como os planos de bacia, outorga de uso, cobrança pelo uso da água, enquadramento dos corpos d’água e o sistema de informações — foram criados para garantir que as decisões sobre a água fossem baseadas em planejamento e em critérios técnicos, com a participação dos diversos usuários e setores da sociedade. Os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs), instâncias colegiadas com representação tripartite (governo, usuários e sociedade civil), são considerados o “parlamento das águas” e cumprem papel central na governança hídrica brasileira (ANA, 2024).
Apesar dos avanços, o Brasil ainda enfrenta sérios desafios para consolidar uma governança efetiva e democrática da água. Em muitas regiões, os Comitês de Bacia ainda têm atuação limitada, com baixa capacidade técnica, falta de recursos financeiros e pouca representatividade da sociedade civil. A gestão da água, muitas vezes, não está devidamente integrada a outras agendas essenciais, como saneamento, energia, agricultura, uso do solo e adaptação às mudanças climáticas.
Um dos principais problemas enfrentados é a fragilidade institucional dos órgãos gestores de recursos hídricos. Em diversos estados, os sistemas de gestão são sub financiados, com equipes técnicas reduzidas e com autonomia limitada para fiscalizar e planejar de forma eficaz. A carência de dados atualizados e de qualidade também compromete o monitoramento e a tomada de decisão baseada em evidências (ANA, 2022). Além disso, a crescente pressão sobre os recursos hídricos — causada por urbanização desordenada, poluição, desmatamento, mineração e irrigação intensiva — tem agravado os conflitos entre usos múltiplos da água, sobretudo em bacias hidrográficas críticas como por exemplo as dos rios São Francisco, Doce, Paraíba do Sul e Paraná.
As mudanças climáticas adicionam uma camada extra de complexidade à governança da água. Eventos extremos, como secas prolongadas e enchentes, tendem a se tornar mais frequentes e intensos, impactando tanto a disponibilidade quanto a qualidade da água (UNESCO, 2021). A imprevisibilidade climática exige sistemas de gestão mais resilientes, flexíveis e capazes de responder com agilidade às crises hídricas. Isso demanda maior integração entre os sistemas de monitoramento meteorológico, os planos de contingência e os mecanismos de governança territorial.
Apesar desses desafios, há também importantes oportunidades para fortalecer a governança da água no Brasil. Um dos caminhos promissores é o investimento em soluções baseadas na natureza (SbN), como a restauração de nascentes, a proteção de matas ciliares e a recuperação de áreas úmidas, além de ajudar na regulação do ciclo hidrológico e na melhoria da qualidade da água. A integração entre políticas de recursos hídricos e políticas de conservação ambiental pode ampliar os benefícios e reduzir os custos de ações isoladas.
Outra frente de ação estratégica é o fortalecimento da educação ambiental e da participação social nos processos decisórios. Iniciativas que promovem a divulgação de informações com uma linguagem acessível, inclusão de diversos setores e níveis sociais em torno da gestão da água geram conscientização e consequentemente podem gerar uma pressão social por políticas mais eficazes. Os Comitês de Bacia devem ser valorizados como espaços de mediação de conflitos e pactuação de soluções, e precisam contar com apoio técnico, financeiro e político para exercerem plenamente suas funções.
A digitalização dos sistemas de gestão, por meio de plataformas online, dados geoespaciais e inteligência artificial, também oferece oportunidades para tornar a governança da água mais transparente, acessível e eficiente.
O contexto brasileiro exige, portanto, uma abordagem multiescalar e intersetorial para a governança da água. A gestão dos recursos hídricos não pode ser tratada isoladamente, mas sim como parte de uma política pública integrada, que articule conservação ambiental, segurança alimentar, desenvolvimento urbano e adaptação climática. A cooperação entre os setores público, privado e sociedade civil é fundamental para construir soluções duradouras e equitativas.
É importante destacar que a governança da água não se limita à gestão técnica de volumes e fluxos. Ela envolve decisões políticas sobre quem tem direito à água, como os recursos são distribuídos, quais prioridades são definidas e como os impactos são compartilhados. Nesse sentido, a governança hídrica é também uma questão de justiça ambiental e de direitos humanos. O acesso à água segura e suficiente é reconhecido pela ONU como um direito humano essencial, e sua garantia depende diretamente de instituições fortes, inclusivas e transparentes (UNESCO, 2021).
O Brasil tem uma base legal sólida e uma vasta experiência acumulada em gestão participativa da água e pode ser aplicada na governança. Os desafios são muitos, mas as oportunidades para avançar também. Fortalecer a governança da água é proteger a vida, promover o desenvolvimento sustentável e garantir um futuro mais resiliente para todas as gerações.
Referências
ANA – Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. (2022). Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil – Informe Anual. Brasília: ANA.
ANA – Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. (2024). Comitês de Bacias Hidrográficas Interestaduais. Brasília: ANA.
BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. (2015). Water Governance in Brazil: Strengthening Strategic Capacity. Paris: OECD Publishing.
UNESCO. (2021). The United Nations World Water Development Report 2021: Valuing Water. Paris: UNESCO.