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Bacias Hidrográficas: Desafios e Oportunidades para a Gestão dos Recursos Hídricos

A crescente pressão sobre os recursos hídricos torna urgente repensar os modelos de gestão da água, sobretudo em países com ampla diversidade ecológica e hídrica como o Brasil. Nesse contexto, as bacias hidrográficas surgem como unidades fundamentais de planejamento e gestão. Por definição, de uma forma simplista, uma bacia hidrográfica é a área do território onde toda a água da chuva que cai converge para um ponto comum, geralmente um rio principal, passando por afluentes e lençois freáticos. Essa lógica natural oferece a estrutura ideal para a gestão integrada da água, pois permite considerar de forma holística os múltiplos fatores que afetam a disponibilidade e a qualidade desse recurso.

No entanto, gerir uma bacia hidrográfica é um processo complexo. Envolve atores diversos, múltiplos usos da água, sobreposição de competências institucionais e, frequentemente, uma fragmentação no uso e ocupação do solo. A gestão eficiente das bacias hidrográficas requer o alinhamento entre políticas públicas, conhecimento técnico-científico, mecanismos regulatórios, participação social e práticas sustentáveis. Ao mesmo tempo, essas complexidades também abrem oportunidades para inovação institucional, cooperação intersetorial e transformação territorial com base na sustentabilidade.

A escolha da bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gestão dos recursos hídricos não é arbitrária. Ela se baseia em fundamentos hidrológicos, ecológicos e territoriais. Diferentemente de divisões políticas, a bacia é uma unidade natural: tudo o que ocorre dentro de seus limites afeta o ciclo da água, a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos associados. Assim, ela oferece um território coerente para implementar ações integradas que busquem proteger, conservar e distribuir os recursos hídricos de forma justa e eficiente.

A literatura científica reforça essa abordagem integrada, segundo Global Water Partnership (2000) a Gestão Integrada de Recursos Hídricos (GIRH) deve promover o desenvolvimento coordenado e a gestão da água, da terra e dos recursos relacionados, visando ao máximo bem-estar econômico e social, de forma equitativa e sem comprometer a sustentabilidade dos ecossistemas vitais.

No Brasil, essa perspectiva está consolidada na Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), instituída pela Lei nº 9.433/1997, que estabeleceu a bacia hidrográfica como unidade de planejamento. A lei também criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), o instrumento da cobrança pelo uso da água e os Comitês de Bacia Hidrográfica, com o objetivo de assegurar a participação da sociedade civil, usuários e poder público na gestão.

 

Desafios da gestão de bacias no Brasil

Apesar dos avanços institucionais promovidos pela PNRH, a realidade brasileira ainda revela grandes lacunas na gestão eficiente das bacias hidrográficas. Um dos principais desafios é a falta de articulação entre os diferentes níveis de governo — federal, estadual e municipal — que compartilham responsabilidades sobre os recursos hídricos, o que muitas vezes resulta em políticas sobrepostas, desarticuladas e ineficazes. Essa fragmentação institucional compromete o planejamento de ações coordenadas, especialmente em bacias que atravessam mais de uma unidade federativa.

Outro entrave significativo é a baixa implementação dos instrumentos de gestão previstos em lei. De acordo com o relatório da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA, 2024), em 2023 havia 12 planos de bacias interestaduais, 200 planos de bacias estaduais e 26 Planos Estaduais de Recursos Hídricos. Vale destacar que muitos comitês de bacia ainda carecem (e muito) de estrutura técnica e financeira, além de baixa participação efetiva da sociedade civil. Isso compromete a legitimidade e a eficiência das decisões.

Além disso, há desafios técnicos relacionados à quantificação e à qualidade da água disponível, especialmente diante de pressões crescentes como urbanização desordenada, expansão agrícola, industrialização e mudanças climáticas. O desmatamento das nascentes e das matas ciliares, a poluição dos corpos d’água por efluentes domésticos e industriais, o uso indiscriminado de fertilizantes e a impermeabilização do solo são fatores que deterioram as bacias e reduzem sua capacidade de armazenar e purificar a água naturalmente.

 

 

A cobrança pelo uso da água, um dos principais instrumentos econômicos da PNRH, ainda é subutilizada, essa cobrança tem o duplo objetivo de uso sustentável da água e arrecadar recursos para ações de conservação e melhoria da gestão, o que só será possível com uma implementação mais ampla e transparente.

Oportunidades para fortalecer a gestão das bacias

Apesar desses obstáculos, as bacias hidrográficas oferecem grandes oportunidades para aprimorar a gestão da água e promover um modelo de desenvolvimento mais sustentável. A primeira delas é a integração com políticas de uso e ocupação do solo. É impossível pensar em gestão hídrica sem considerar o modo como o território é usado. A presença de vegetação aumenta o aporte de matéria orgânica dos solos, conserva a umidade, aumenta a capacidade de absorção e infiltração de água e com isso promove a regulação do ciclo hidrológico (SALES,202).

Dessa forma, instrumentos como o zoneamento ecológico-econômico (ZEE), o Plano Diretor Municipal, os Planos de Saneamento Básico e os mecanismos de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) podem ser aliados poderosos da gestão das bacias, promovendo práticas sustentáveis de uso da terra e conservação dos recursos naturais. O Projeto Produtor de Água, coordenado pela ANA e executado em várias bacias brasileiras, é um exemplo bem-sucedido de integração entre usuários, produtores rurais e políticas públicas para reduzir o assoreamento e melhorar a qualidade da água.

Outro campo promissor é o uso de inovações tecnológicas. A adoção de sistemas de monitoramento por satélite, sensores de qualidade da água, modelagens hidrológicas e plataformas de gestão de dados em tempo real permite o acompanhamento preciso das condições das bacias e a tomada de decisões mais assertivas. 

Mudanças climáticas e resiliência das bacias

A crise climática global impõe desafios adicionais à gestão das bacias hidrográficas. O aumento da frequência de eventos extremos — como secas severas e chuvas intensas — agrava os problemas de disponibilidade hídrica e compromete a infraestrutura de abastecimento e saneamento. Em bacias onde a água ainda é usada sem o devido planejamento, com vegetação degradada têm menor capacidade de amortecer esses impactos, tornando populações inteiras mais vulneráveis à escassez e à contaminação da água.

 

Nesse cenário, a restauração ecológica das bacias emerge como estratégia central. Restaurar matas ciliares, recuperar áreas degradadas e proteger nascentes são medidas que aumentam a resiliência hidrológica dos territórios e contribuem para o sequestro de carbono, mitigando também os efeitos da mudança do clima. A ciência já mostrou que áreas com vegetação nativa bem preservada apresentam maior capacidade de retenção hídrica e menor risco de desastres naturais.

Além disso, ações de educação ambiental e mobilização social dentro das bacias podem contribuir para a formação de uma cultura de gestão responsável da água, fomentando o engajamento da população e a mudança de práticas cotidianas. Comunidades organizadas, escolas, universidades e organizações da sociedade civil são atores estratégicos nesse processo de construção coletiva da governança hídrica.

As bacias hidrográficas representam não apenas uma unidade natural de gestão da água, mas um verdadeiro laboratório de governança territorial integrada. Gerir bem uma bacia é gerir seus recursos hídricos, sua vegetação, seu solo, sua biodiversidade e, acima de tudo, as relações humanas que ali se estabelecem. Embora os desafios sejam expressivos — desde a fragmentação institucional até os impactos das mudanças climáticas —, as oportunidades para transformar essa realidade são igualmente robustas.

Referências

AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO (ANA). (2024). Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil. Brasília: ANA: https://www.snirh.gov.br/portal/centrais-de-conteudos/conjuntura-dos-recursos-hidricos/conjuntura2024_04122024.pdf

GLOBAL WATER PARTNERSHIP (GWP). (2000). Integrated Water Resources Management. TAC Background Paper No. 4: https://www.gwp.org/globalassets/global/toolbox/publications/background-papers/04-integrated-water-resources-management-2000-english.pdf

SALES, N. E. (2020). Estimativa do Potencial de Infiltração e Recarga de Água em Bacias Hidrográficas Considerando a Qualidade do Solo: https://www2.uesb.br/ppg/ppgca/wp-content/uploads/2022/03/Dissertação-final-1.pdf