Transição energética e água: Economia circular e futuro sustentável
A transição energética rumo a uma matriz limpa é uma das prioridades globais diante da emergência climática, entretanto, pouco se discute sobre um aspecto fundamental dessa transformação: a interdependência entre energia e água. O setor energético consome grandes volumes de água para geração, resfriamento e processamento, enquanto o setor hídrico depende intensamente de energia para captação, tratamento e distribuição. Assim, pensar a transição energética fora de uma perspectiva integrada à gestão dos recursos hídricos é negligenciar parte essencial da equação da sustentabilidade.
Além disso, é crescente o reconhecimento de que a economia linear – baseada na extração, uso e descarte – não é mais compatível com os limites planetários. Neste cenário, a economia circular surge como paradigma estratégico para promover inovação, eficiência e regeneração dos sistemas naturais. Aplicada à água e à energia, ela propõe ciclos fechados de uso, reaproveitamento e valorização, reduzindo perdas, emissões e impactos ambientais.
A relação entre água e energia: interdependência estratégica
Os setores de água e energia estão profundamente conectados. Esse fenômeno, conhecido como nexus água-energia, refere-se à dependência mútua entre os dois recursos. Por exemplo, a geração termelétrica (fóssil ou nuclear) e parte das energias renováveis como a hidrelétrica exigem volumes significativos de água para operação. Ao mesmo tempo, sistemas de abastecimento, tratamento de esgoto e dessalinização dependem de energia elétrica em todas as suas etapas.
Segundo a Agência Internacional de Energia (UNITED NATIONS), cerca de 10% da água retirada globalmente é utilizada na produção de energia. Essa interdependência se intensifica com o crescimento urbano, industrial e agrícola, e se torna ainda mais desafiadora em contextos de escassez hídrica ou instabilidade energética.
Além do consumo direto, há impactos indiretos significativos. A geração de energia por fontes fósseis contribui para as mudanças climáticas, que, por sua vez, alteram o ciclo hidrológico, com aumento da frequência de secas e enchentes, comprometendo a segurança hídrica. Inversamente, a má gestão dos recursos hídricos pode comprometer a produção energética, como ocorre nas crises de abastecimento em reservatórios hidrelétricos, que já provocaram apagões e aumentos tarifários no Brasil (EPE, 2023).
Transição energética no Brasil: oportunidades e riscos para os recursos hídricos
O Brasil possui uma matriz energética relativamente limpa, com cerca de 49% da energia primária oriunda de fontes renováveis em 2020 (EPE, 2023), especialmente hidrelétricas, biomassa e eólica. No entanto, há uma crescente pressão para diversificar e descarbonizar ainda mais a matriz, sobretudo com o avanço da energia solar, do hidrogênio verde e da eletrificação da mobilidade urbana.
A transição para essas fontes, embora positiva do ponto de vista das emissões, traz novos desafios hídricos. A produção de hidrogênio verde, por exemplo, demanda grandes quantidades de água de alta pureza, e sua viabilidade em regiões semiáridas depende do uso de tecnologias de dessalinização ou de fontes alternativas. Já a ampliação da energia solar em larga escala pode provocar impactos sobre o uso da terra e a biodiversidade, com eventuais repercussões nos regimes hídricos locais.
Além disso, a dependência de energia para operar sistemas de abastecimento, irrigação e saneamento exige que a transição energética seja pensada também como uma oportunidade para descarbonizar o setor hídrico. Sistemas eficientes de bombeamento, recuperação de energia em redes de esgoto, microgeração fotovoltaica em estações de tratamento e controle inteligente de perdas são exemplos de como unir os dois objetivos: segurança hídrica e neutralidade climática.
Economia circular aplicada à água e energia
A economia circular é baseada em três princípios: eliminar resíduos e poluição, manter produtos e materiais em uso e regenerar sistemas naturais (ELLEN MACARTHUR FOUNDATION, 2019). Quando aplicada aos setores de água e energia, essa abordagem envolve estratégias como:
1. Reuso e reciclagem de água: em ambientes urbanos e industriais, o reuso de água tratada para fins não potáveis (irrigação, refrigeração, lavagem de ruas) reduz a demanda sobre mananciais e os custos energéticos associados ao bombeamento.
2. Aproveitamento energético do esgoto: o tratamento de águas residuais pode gerar biogás, uma fonte renovável de energia. Usinas de tratamento de esgoto com biodigestores já produzem eletricidade a partir do lodo, reduzindo custos operacionais e emissões de metano.
3. Redução de perdas e eficiência energética: tanto no setor elétrico quanto no de água, perdas no sistema representam desperdício de recursos e aumento de impacto ambiental. No Brasil, as perdas de água superam 40% em média, e as perdas técnicas de energia elétrica EM 2020 representavam 14,8% do total distribuído (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2022; JORNAL DA USP, 2023). Investimentos em monitoramento inteligente, sensores, automação e manutenção preventiva são centrais para uma economia circular eficiente.
4. Simbiose industrial: é possível integrar diferentes atividades econômicas para que os resíduos de uma se tornem insumos de outra. Um exemplo é o uso de calor residual de usinas térmicas para dessalinização ou aquecimento de água em comunidades vizinhas.
Essas soluções exigem mudanças tecnológicas, regulatórias e culturais. No entanto, trazem benefícios claros: economia de recursos, geração de emprego verde, redução de custos operacionais e maior resiliência frente às crises climáticas e hídricas.
A integração entre políticas de energia e água ainda é incipiente no Brasil. No entanto, há sinais de mudança, mas ainda faltam incentivos mais robustos para a adoção de soluções circulares, como linhas de crédito específicas, isenções fiscais, precificação de externalidades e indicadores integrados.
Cidades circulares e o futuro sustentável
A urbanização crescente impõe enormes pressões sobre os sistemas de água e energia. Estima-se que, até 2050, mais de 68% da população mundial viverá em cidades (ONU-Habitat, 2022). Isso torna os centros urbanos locais estratégicos para promover a economia circular e integrar os sistemas de água e energia de forma inteligente e eficiente.
Cidades como Copenhague, Singapura e São Francisco já implementam políticas de economia circular em escala, promovendo reuso de água, geração de energia a partir de resíduos, mobilidade elétrica e edifícios com balanço energético positivo.
Além das políticas e tecnologias, é necessário investir em educação ambiental, governança participativa e inovação social, para garantir que a transição circular seja inclusiva, justa e enraizada nas realidades locais.
A transição energética e a segurança hídrica não são agendas separadas: são dimensões interdependentes de um mesmo desafio civilizacional. Ao adotar os princípios da economia circular, é possível alinhar a gestão da água e da energia com os limites ecológicos do planeta, promovendo inovação, equidade e resiliência.
Integrar essas agendas exige não apenas investimentos e novas tecnologias, mas também visão estratégica, articulação entre políticas públicas e engajamento da sociedade civil. O Brasil, com sua rica matriz energética e abundância hídrica (ainda que mal distribuída), tem a oportunidade de liderar essa transformação – mas apenas se souber conciliar crescimento com regeneração.
A construção de um futuro sustentável passa, inevitavelmente, pela água e pela energia. Que saibamos tratá-las como bens comuns, e não apenas como insumos de mercado.
Referências:
EPE – Empresa de Pesquisa Energética. (2024). Escassez Hídrica em 2021: Diagnóstico e Oportunidades para o Planejamento da Expansão da Oferta de Eletricidade: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-766/NT-EPE-DEE-DEA-001-2023_Escassez_Hidrica_2021_Diagnostico_e_Oportunidades.pdf
EPE – Empresa de Pesquisa Energética. (2023). Neutralidade de carbono até 2050: cenários para uma transição eficiente no Brasil: https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/PublicacoesArquivos/publicacao-726/PTE_RelatorioFinal_PT_Digital_.pdf
Ellen MacArthur Foundation. (2019). Completing the Picture: How the Circular Economy Tackles Climate Change: https://www.ellenmacarthurfoundation.org/pt/temas/economia-circular-introducao/visao-geral
INSTITUTO TRATA BRASIL. (2022). Brasil chega aos 40% de perdas de água potável: https://tratabrasil.org.br/brasil-chega-aos-40-de-perdas-de-agua-potavel/
JORNAL DA USP. (2023). “Série Energia”: Perdas de energia na distribuição e transmissão são grande desafio: https://jornal.usp.br/campus-ribeirao-preto/serie-energia-perdas-de-energia-na-distribuicao-e-transmissao-sao-grande-desafio/
ONU-Habitat. (2020). World Cities Report: https://brasil.un.org/pt-br/188520-onu-habitat-população-mundial-será-68-urbana-até-2050
UNITED NATIONS. Rede de Soluções Sustentáveis para Água e Energia: https://www-un-org.translate.goog/en/water-energy-network/page/technological-areas-and-innovation-systems?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tc