Água e desigualdade: desafios do acesso universal e estratégias para inclusão social
A água é condição essencial para a vida, mas o acesso a ela ainda é um dos maiores marcadores de desigualdade social. Reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como direito humano desde 2010, o acesso à água potável e ao saneamento básico deveria ser universal, incondicional e equitativo. No entanto, a realidade mostra um cenário crítico em que a desigualdade racial, a localização geográfica e a vulnerabilidade social determinam quem tem ou não acesso a serviços básicos de abastecimento e esgotamento sanitário.
Segundo o Instituto Trata Brasil (2023), cerca de 33 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e 90 milhões vivem sem coleta de esgoto adequada, e ainda salienta que 72% da população abaixo da linha da pobreza vive em moradias sem abastecimento regular de água (TRATA BRASIL, 2024). Esses números, além de alarmantes, evidenciam uma injustiça estrutural: o Brasil, país que detém cerca de 12% da água doce superficial do planeta, não garante que esse recurso chegue a todos. A desigualdade aparece de forma explícita na distribuição territorial: enquanto em áreas mais ricas do Sudeste os índices de cobertura se aproximam da universalização, no Norte e Nordeste milhões de pessoas permanecem excluídas, muitas vezes em municípios rurais, comunidades ribeirinhas ou periferias urbanas.
A falta de acesso não se resume à ausência de infraestrutura. Ela se traduz em impactos diretos na saúde e no desenvolvimento social. A World Health Organization (2023) aponta que “em 2022, pelo menos 1,7 bilhão de pessoas em todo o mundo utilizaram uma fonte de água potável contaminada com fezes. A contaminação microbiana da água potável, resultante da contaminação por fezes, representa o maior risco à segurança da água potável”. No Brasil, doenças de veiculação hídrica como diarreias, hepatite A, cólera, esquistossomose e leptospirose continuam a ser registradas em larga escala em regiões vulneráveis. Em 2024, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou uma sobrecarga de internações e atendimentos decorrentes dessas doenças, gerando custos crescentes e pressionando uma estrutura já sobrecarregada. Essa situação revela como a exclusão do acesso à água e saneamento básico não é apenas um problema ambiental, mas sobretudo social e econômico.
O impacto recai de forma desigual sobre os grupos mais vulneráveis. Crianças são as mais afetadas: a diarreia, ainda comum em áreas sem saneamento, é uma das principais causas de mortalidade infantil e compromete o desenvolvimento físico e cognitivo. Mulheres enfrentam maiores barreiras em relação à higiene pessoal e menstrual em escolas ou comunidades sem infraestrutura adequada, o que compromete sua dignidade e participação social. A desigualdade racial também se expressa com força: dados do IPEA (2022) mostram que a população negra tem menor acesso a água e saneamento em comparação com a população branca, reforçando ciclos de exclusão e desigualdade histórica. Povos indígenas e comunidades tradicionais sofrem ainda mais com a precariedade, frequentemente invisibilizados nos investimentos públicos.
A universalização do saneamento básico, prevista no Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020), estabelece a meta de que até 2033 99% da população tenha acesso à água potável e 90% tenha coleta e tratamento de esgoto. Embora esse seja um objetivo fundamental, especialistas e organizações como o Trata Brasil (2025) alertam que o cumprimento da meta exige investimentos anuais da ordem de 45 bilhões de reais por ano, valor muito superior ao historicamente destinado ao setor. A desigualdade no ritmo dos investimentos entre regiões e municípios reforça o risco de que populações já marginalizadas fiquem ainda mais para trás.
As desigualdades relacionadas à água e ao saneamento estão no centro de um círculo vicioso: a ausência de serviços básicos leva ao adoecimento, que gera custos ao sistema público de saúde, compromete a produtividade e limita as oportunidades de desenvolvimento. Estudo da Jornal da USP (2021) mostra que cada R$1 investido em saneamento gera uma economia de R$4 em saúde e produtividade. Isso significa que, além de ser uma questão de dignidade e justiça social, a inclusão no acesso à água e saneamento é também uma estratégia inteligente para o crescimento econômico e sustentável do país.
Romper com essa realidade exige estratégias que vão além da infraestrutura tradicional. É preciso investir em tecnologias sociais e soluções adaptadas: cisternas de captação de água da chuva no semiárido, sistemas descentralizados de tratamento de esgoto em comunidades isoladas e reuso de água em áreas urbanas. Essas iniciativas mostram que é possível inovar com soluções de baixo custo e alta eficácia social.
Outro eixo essencial é a inclusão da população nos processos decisórios. A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997) prevê a participação social na gestão, mas na prática o acesso das comunidades vulneráveis aos comitês de bacia hidrográfica e conselhos ainda é restrito. Dar voz às populações diretamente afetadas, reconhecendo seus saberes e demandas, é condição para desenvolver políticas mais justas e eficazes.
No cenário global, o Brasil assumiu compromissos com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entre eles o ODS 6, que visa “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos”. No entanto, a persistência de desigualdades internas ameaça o cumprimento desse objetivo até 2030. Sem enfrentar a exclusão estrutural, o país corre o risco de perpetuar um quadro em que a água — recurso abundante — permanece inacessível para milhões.
Portanto, falar sobre água e desigualdade é falar sobre o futuro do Brasil. A universalização do saneamento não é apenas uma meta técnica, mas um imperativo ético, social e político. É uma oportunidade de corrigir injustiças históricas, reduzir vulnerabilidades e criar condições de desenvolvimento equitativo. A sobrecarga vivida pelo SUS em 2024 evidencia a urgência do problema e a necessidade de acelerar investimentos, articular políticas intersetoriais e adotar soluções inclusivas.
A água, mais do que um recurso natural, é símbolo da dignidade humana. Tornar seu acesso universal e justo é o caminho para reduzir desigualdades, fortalecer a saúde pública e garantir um futuro sustentável e inclusivo. Se o Brasil pretende cumprir seus compromissos e avançar como nação, é indispensável que a agenda da água e do saneamento seja tratada como prioridade absoluta, não apenas nos discursos, mas nas ações concretas que alcancem os mais vulneráveis.
Referências
BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos.
BRASIL. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o Marco Legal do Saneamento Básico.
INSTITUTO TRATA BRASIL. (2023). Benefícios Econômicos da Expansão do Saneamento no Brasil. Disponível em: https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2022/11/Beneficios-economicos-do-saneamento-no-Brasil.pdf
INSTITUTO TRATA BRASIL. (2024). 72% da população abaixo da linha da pobreza vive em moradias sem abastecimento regular de água. Disponível em: https://tratabrasil.org.br/72-da-populacao-abaixo-da-linha-da-pobreza-vive-em-moradias-sem-abastecimento-regular-de-agua/
INSTITUTO TRATA BRASIL. (2025). Ranking do Saneamento do Instituto Trata Brasil de 2025 (Snis/Sinisa 2023). Disponível em: https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/07/Versao-Final-de-Estudo-da-GO-Associados-Ranking-do-Saneamento-de-2025_Rio-Corrigido-V4.pdf
IPEA. (2022). A pobreza do Brasil tem cor. A sua cor é negra. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/retrato/indicadores/renda-pobreza-e-desigualdade/apresentacao
JORNAL DA USP. (2021). Investimento em saneamento básico retorna em benefícios à saúde. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/investimento-em-saneamento-basico-retorna-em-beneficios-a-saude/