Água para todos os territórios: descentralização como caminho para inclusão
A água é um direito humano fundamental, reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010, mas a realidade brasileira mostra que ainda há milhões de pessoas vivendo em condições precárias, sem acesso regular a esse recurso. Embora o país detenha cerca de 12% da água doce superficial do mundo, a distribuição desigual, os desafios logísticos e a ausência de políticas públicas eficazes tornam a universalização do acesso um objetivo distante. Nesse contexto, a descentralização surge como estratégia essencial para levar água aos territórios que ainda necessitam de muito apoio, onde as soluções centralizadas e convencionais de abastecimento mostram-se inviáveis ou insuficientes.

Os dados mais recentes revelam que cerca de 32 milhões de brasileiros ainda não têm acesso à água tratada, enquanto quase 90 milhões não contam com coleta de esgoto adequada (AGÊNCIA BRASIL, 2024). Os índices de cobertura variam enormemente entre regiões, em relação ao atendimento total de água os piores índices estão nos municípios de Porto Velho (RO) com 35,02% e Macapá (AP) com 40,04%, já em relação ao atendimento total de esgoto nenhum município coleta esgoto de ao menos 90% da população, sendo o de menor valor Santarém (PA) com 3,77%; já os municípios do sudeste e sul mostram índices bem mais altos tanto para água como para esgoto (TRATA BRASIL, 2025). Essa disparidade mostra como a geografia, a densidade populacional e a vulnerabilidade socioeconômica dificultam a aplicação de modelos centralizados de infraestrutura, especialmente em áreas rurais, comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas.
A descentralização do acesso à água significa adotar soluções adaptadas à realidade local, que vão além de grandes redes de distribuição interligadas. Trata-se de considerar a diversidade territorial e cultural do Brasil, desenvolvendo alternativas como cisternas de captação de água de chuva, poços artesianos com tratamento adequado, sistemas móveis de filtragem e purificação, dessalinização em áreas de escassez hídrica e modelos de gestão comunitária da água. Essas tecnologias, frequentemente chamadas de tecnologias sociais, buscam promover a transformação social através do cuidado com o meio ambienta, respeito a cultura, são de baixo custo, fácil manutenção e promove a autonomia local, permitindo que comunidades vulneráveis garantam segurança hídrica mesmo sem depender de longos e caros sistemas centralizados (EMBRAPA).

Um exemplo concreto dessa realidade está em Porto Velho (RO), na Amazônia. Em comunidades ribeirinhas da região, muitas famílias vivem a poucos metros de grandes rios, mas sem acesso à água potável. A água disponível é frequentemente contaminada por sedimentos, matéria orgânica e, em alguns casos, resíduos urbanos ou garimpeiros. Nesse cenário, iniciativas que implementam sistemas de captação, filtração e distribuição em pequena escala têm sido transformadoras. Projetos que instalam filtros comunitários ou unidades de tratamento portáteis permitem que centenas de pessoas tenham acesso a água limpa diariamente, reduzindo a incidência de doenças de veiculação hídrica, como diarreias, hepatite A e parasitoses — problemas que sobrecarregam o SUS e impactam de forma mais severa crianças e idosos (TRATA BRASIL, 2025).
A importância da descentralização também está diretamente relacionada à resiliência climática. Mudanças no regime de chuvas, secas prolongadas no Semiárido nordestino e enchentes cada vez mais frequentes na Amazônia e no Sul demonstram que sistemas centralizados podem falhar diante de eventos extremos. Sistemas locais e descentralizados, ao contrário, permitem maior flexibilidade e autonomia comunitária para lidar com crises. As cisternas instaladas no Semiárido, por exemplo, já beneficiaram milhões de famílias desde os anos 2000, garantindo água de qualidade mesmo em períodos de estiagem prolongada (ASA, 2015). Esses exemplos mostram que a descentralização é não apenas uma solução de acesso, mas também de adaptação às mudanças climáticas.
Outro ponto crucial é a participação social. A descentralização não se limita ao aspecto técnico, mas envolve também a gestão comunitária. Quando as comunidades assumem a responsabilidade pelo cuidado e manutenção dos sistemas, fortalecem-se laços sociais, aumenta-se o senso de pertencimento e ampliam-se as chances de sustentabilidade a longo prazo. Nesse sentido, a descentralização se conecta ao princípio da gestão democrática da água, previsto na Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997).

No entanto, ainda existem barreiras significativas para ampliar esse modelo. Muitas comunidades isoladas enfrentam ausência de apoio técnico, dificuldade de financiamento e carência de políticas públicas que priorizem soluções descentralizadas. O Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020) trouxe metas ambiciosas para universalizar o acesso até 2033, mas a ênfase continua fortemente centralizada em grandes investimentos urbanos. Sem incorporar modelos flexíveis e territorializados, corre-se o risco de manter excluídas justamente as populações que mais precisam: indígenas, quilombolas, ribeirinhos e moradores de áreas rurais.
A discussão sobre descentralização também está alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 6, que propõe assegurar água limpa e saneamento para todos até 2030. Para o Brasil avançar nessa agenda, será necessário combinar grandes investimentos em infraestrutura com incentivos claros para tecnologias sociais e modelos comunitários. Essa combinação pode ser o caminho para reduzir desigualdades regionais e garantir que “ninguém seja deixado para trás”, como propõe a própria Agenda 2030.
Portanto, levar água aos confins do Brasil exige muito mais do que obras centralizadas de grande porte. Significa repensar o conceito de universalização para além da lógica urbana-industrial, reconhecendo a diversidade social, cultural e ambiental do país. Significa investir em inovação, descentralização e protagonismo comunitário. A experiência de Porto Velho, as cisternas do Semiárido e tantas outras iniciativas mostram que é possível construir um modelo de acesso à água que seja inclusivo, resiliente e justo.
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A água, em um país tão diverso como o Brasil, só será verdadeiramente universal quando chegar a todos — inclusive àqueles que vivem nos lugares mais distantes. Garantir água a todos do Brasil é garantir dignidade, saúde e cidadania.
Referências
ASA – Articulação Semiárido Brasileiro. (2015). Programa Um Milhão de Cisternas: resultados e impactos sociais. Recife: ASA. Disponível em: https://asabrasil.org.br/projeto/p1mc/
BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos.
BRASIL. Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Atualiza o Marco Legal do Saneamento Básico.
AGÊNCIA BRASIL. (2024). Cerca de 32 milhões de brasileiros vivem sem acesso a água potável. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/meio-ambiente/audio/2024-07/cerca-de-32-milhoes-de-brasileiros-vivem-sem-acesso-agua-potavel
EMBRAPA. Inovação Social. Disponível em: https://www.embrapa.br/inovacao-social/tecnologias-sociais
INSTITUTO TRATA BRASIL. (2025). Ranking do Saneamento do Instituto Trata Brasil de 2025 (SNIS/SINISA 2023). São Paulo: Trata Brasil. Disponível em: https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/07/Versao-Final-de-Estudo-da-GO-Associados-Ranking-do-Saneamento-de-2025_Rio-Corrigido-V4.pdf
INSTITUTO TRATA BRASIL. (2025). Saneamento é saúde - Como a falta de acesso à infraestrutura básica afeta a incidência de doenças relativas ao saneamento ambiental inadequado no Brasil? São Paulo: Trata Brasil. Disponível em: https://tratabrasil.org.br/wp-content/uploads/2025/03/ESTUDO-COMPLETO-Saneamento-e-saude-Como-a-falta-de-acesso-a-infraestrutura-basica-afeta-as-incidencias-de-doencas-relacionadas-ao-saneamento-ambiental-inadequado-no-Brasil-TRATA-BRASIL.pdf