Sistemas de Reuso de Água: Inovações para Sustentabilidade Urbana
A urbanização a tempos tem gerado uma pressão crescente sobre os sistemas de abastecimento de água nas cidades. O aumento da demanda, aliado à degradação de mananciais, à variabilidade climática e à má gestão dos recursos hídricos, tem exposto populações urbanas a riscos crescentes de escassez hídrica. Nesse cenário, os sistemas de reúso de água são soluções estratégicas, eficientes e inovadoras para promover a sustentabilidade hídrica no meio urbano. Trata-se de uma alternativa que não apenas reduz o consumo de água potável, mas também contribui para a conservação ambiental, a resiliência climática e a segurança hídrica das cidades.
O reúso de água consiste no aproveitamento de águas residuárias — previamente tratadas — para usos diversos, como irrigação, limpeza urbana, processos industriais e até fins potáveis, dependendo do nível de tratamento aplicado. Embora o conceito não seja novo, as tecnologias, regulamentações e modelos de governança que envolvem o reúso vêm se aprimorando significativamente nas últimas décadas. A consolidação de um marco regulatório, o avanço de soluções descentralizadas, a inovação tecnológica e a crescente conscientização ambiental da sociedade abrem espaço para que o reúso de água se torne uma política pública estruturante nas cidades do século XXI.
O papel estratégico do reúso de água nas cidades
Nas zonas urbanas, onde a demanda por água é intensa e contínua, os sistemas tradicionais de captação e distribuição enfrentam limitações cada vez mais visíveis. Estimativas da Organização das Nações Unidas Brasil (2015) indicam que até 2050 um bilhão de pessoas viverão em cidades com escassez de água. Além disso, o tratamento de efluentes domésticos e industriais ainda é insuficiente em muitos contextos, o que agrava a poluição dos corpos d’água e compromete a saúde pública e o meio ambiente.
Diante dessa conjuntura, os sistemas de reúso emergem como uma solução circular e eficiente. Eles permitem a reutilização de águas residuais tratadas, reduzindo a necessidade de captação em fontes naturais e aliviando os sistemas de esgoto. Além disso, ao manter o recurso dentro do ciclo urbano, essas tecnologias reduzem o consumo energético envolvido no transporte de água e esgoto, gerando ganhos operacionais, ambientais e econômicos.
O reúso planejado — aquele que é sistematizado, controlado e regulado — pode ser classificado em quatro categorias principais: agrícola, industrial, urbano e potável. No meio urbano, destaca-se o reúso não potável para irrigação de jardins, lavagem de vias públicas, descarga de sanitários, resfriamento de sistemas de ar-condicionado e limpeza de áreas industriais. Já o reúso potável pode ser direto (introduzido diretamente no sistema de distribuição após tratamento avançado) ou indireto (retornado ao meio ambiente, como rios ou aquíferos, antes de nova captação).
Panorama global e o caso do Brasil
Diversos países têm investido fortemente em sistemas de reúso de água, com resultados promissores. Israel, por exemplo, é referência mundial, reutilizando mais de 80% de suas águas residuais, principalmente na agricultura (REBOB, 2022). Singapura, por sua vez, criou o sistema NEWater, que transforma efluentes em água potável com alto grau de pureza por meio de tecnologias de ultrafiltração, osmose reversa e desinfecção por UV. Nos Estados Unidos, estados como Califórnia, Texas e Arizona vêm adotando sistemas de reúso direto para abastecimento urbano diante de secas prolongadas.
No Brasil, embora o potencial seja elevado, o reúso ainda é pouco explorado em escala urbana. As principais experiências estão concentradas em usos industriais ou em setores específicos, como o polo petroquímico de Capuava (SP), que opera com reúso de efluentes da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) ABC, e no setor de papel e celulose.
Entre os entraves para a expansão do reúso no país estão a fragmentação normativa, a ausência de incentivos econômicos, o baixo investimento em infraestrutura de saneamento e, não menos importante, a resistência cultural ao uso de água de reúso, especialmente para fins potáveis. No entanto, nos últimos anos, iniciativas importantes têm buscado reverter esse quadro. A publicação da Norma ABNT NBR 13.969/1997, atualizada em 2022, e o avanço do Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020) oferecem bases regulatórias mais sólidas para impulsionar o setor.
Inovações tecnológicas em reúso de água
O avanço tecnológico tem sido decisivo para viabilizar soluções de reúso seguras e eficientes. Entre as principais tecnologias utilizadas destacam-se:
- Filtração por membranas (ultrafiltração, nanofiltração e osmose reversa): promovem a remoção de sólidos suspensos, bactérias, vírus e até micropoluentes, garantindo alto nível de pureza da água.
- Processos avançados de oxidação (ozônio, peróxido de hidrogênio, radiação UV): utilizados para a degradação de compostos orgânicos complexos e patógenos resistentes.
- Wetlands construídas: sistemas naturais ou semi-naturais de tratamento baseados na ação de plantas e microrganismos, com baixo custo e manutenção simplificada.
- Reatores biológicos de leito móvel (MBBR) e lodos ativados com membranas (MBR): promovem alto desempenho na remoção de carga orgânica e nitrogênio, sendo ideais para reúso industrial ou urbano.
Essas tecnologias permitem o reúso descentralizado, ou seja, a implementação de sistemas de tratamento e reaproveitamento no próprio local de geração do efluente, como edifícios, centros comerciais, hospitais ou indústrias. Isso reduz custos de transporte e facilita a implementação gradual de políticas de reúso nas cidades. Além disso, os sistemas inteligentes com sensores IoT e monitoramento remoto aumentam a segurança, o controle e a rastreabilidade do processo.
Sustentabilidade urbana e os múltiplos ganhos do reúso
A adoção de sistemas de reúso traz ganhos evidentes em termos de sustentabilidade urbana. Em primeiro lugar, reduz a pressão sobre os mananciais hídricos, contribuindo para a conservação dos ecossistemas e a manutenção dos serviços ecossistêmicos. Em segundo, melhora a resiliência das cidades a eventos climáticos extremos — como secas prolongadas ou enchentes —, ao diversificar as fontes de abastecimento.
Do ponto de vista econômico, o reúso pode gerar economias substanciais em setores de grande consumo, como a construção civil, a indústria e os serviços de limpeza urbana. Além disso, estimula a criação de novos nichos de mercado, empregos e cadeias produtivas ligadas ao tratamento, monitoramento e manutenção de sistemas de reúso. Do ponto de vista social, amplia o acesso à água para fins não potáveis, o que pode aliviar carências em comunidades vulneráveis, escolas, hospitais e espaços públicos.
Desafios e caminhos futuros
Apesar do potencial, o reúso enfrenta desafios estruturais e culturais no Brasil. Um dos principais é a necessidade de integração entre os setores de água, esgoto, planejamento urbano e meio ambiente, que ainda operam de forma segmentada. É essencial que os planos diretores municipais, os planos de saneamento e as políticas ambientais incorporem de forma explícita estratégias de reúso.
Outro desafio importante é o financiamento e a viabilidade econômica dos sistemas de reúso, especialmente em contextos de baixa renda. Para isso, é fundamental o papel de incentivos fiscais, linhas de crédito específicas, fundos ambientais e parcerias com o setor privado. A criação de tarifas diferenciadas para água de reúso, como já ocorre em países como Austrália e Singapura, pode estimular o consumo e viabilizar economicamente os projetos.
A educação ambiental e a comunicação transparente com a população também são essenciais para superar resistências culturais e mitos sobre a segurança do reúso. Campanhas de esclarecimento, demonstrações públicas de qualidade e envolvimento da sociedade civil são estratégias eficazes para construir a confiança necessária.
Em um cenário de urbanização crescente, mudanças climáticas e crescente competição pelos recursos hídricos, os sistemas de reúso de água se consolidam como pilares fundamentais da sustentabilidade urbana. Com base em tecnologia avançada, regulação adequada e gestão integrada, o reúso oferece uma alternativa viável, eficiente e ambientalmente responsável para complementar o abastecimento das cidades.
Referências
ABNT NBR 13.969/2022. Reúso de água — Diretrizes aplicáveis. Associação Brasileira de Normas Técnicas: https://www.studocu.com/pt-br/document/universidade-federal-do-amapa/engenharia-civil/abnt-nbr-139691997-tanques-septicos-unidades-de-tratamento-complementar-e-disposicao-final-dos-efluentes-liquidos-projeto-construcao-e-operacao/21868060
Organização das Nações Unidas Brasil. (2015): https://brasil.un.org/pt-br/68950-até-2050-um-bilhão-de-pessoas-viverão-em-cidades-sem-água-suficiente-diz-banco-mundial
REBOB. (2022): https://www.rebob.org.br/post/2017/06/14/saiba-como-israel-transformou-o-deserto-em-oásis